A BD e o 25 de Abril

João Paulo Paiva Boléo

 
Abril de 1975. Mês das eleições para a Assembleia Constituinte. Mês, também, do aparecimento de uma revista de banda desenhada diferente: Visão. E esta revista, que viria a ter a efémera vida de cerca de um ano em apenas 12 números, tornar-se-ia num símbolo da nova BD. Mais do que isso: tornar-se-ia num símbolo dos tempos que se estavam a viver. Não se trata de sobrevalorizar esta experiência única, nem de lhe atribuir qualidades para além daquelas que efectivamente teve. Mas a sua breve história (que até teve o simbolismo de uma «revolução interna», com o afastamento do primeiro director, a que nem faltou uma proclamação de uma «junta revolucionária» afirmando lapidarmente que «um desenhador não pode ser livre enquanto oprime outros desenhadores») foi suficientemente intensa e rica para tornar legítimo e justificado partir dela para uma análise da relação entre a BD e o 25 de Abril. Com um mundo de surpresas que desde já se antecipam se a Visão é a BD portuguesa por excelência proporcionada pela Revolução dos Cravos, esta forma de expressão e comunicação teve uma utilização infinitamente mais vasta e diversificada cuja redescoberta, em aberto, é uma inesgotável fonte de surpresas.

Tem havido a tendência para considerar banda desenhada (e esclareça-se desde já que a mais antiga, portuguesa e expressiva denominação histórias aos quadradinhos é rigorosamente sinónima do galicismo banda desenhada (BD), daí que a primeira, apesar de mais apropriada e feliz, tenda a cair em desuso) como sendo essencialmente a banda desenhada de aventuras, ou, mais genericamente, a banda desenhada que conta uma história em moldes mais ou menos tradicionais. Ora a banda desenhada, não deixando de ser muito isso, e de conter nesses moldes muitas das suas lettres de noblesse, é muito mais do que isso, é uma estrutura narrativa articulada formada por imagens em sequência coerente, com ou sem texto, integrado ou não nas próprias imagens, que conta ou transmite uma história ou uma ideia com a máxima liberdade criativa, sendo portanto vastíssimo o leque de formas e tipos que pode revestir, da mais clássica história bem contada ao mais poético poema gráfico, sem limites de género, tema, forma, grafismo, tom. Essa liberdade esteve presente desde os primeiros tempos, em que a veia satírica predominava e os adultos eram os principais destinatários (pense-se tão só em Bordalo Pinheiro ou nas grandes matrizes da BD norte-americana das primeiras décadas deste século: Little Nemo, Krazy Kat, etc.). Mas – e estamos obviamente a resumir e simplificar muito, e a qualidade de muitas obras não está em causa – com o tempo e limitações político-sociais de vária ordem, a aventura, a par das histórias cómicas, foi-se tornando dominante, com o que a BD teve infinitamente a ganhar, mas os destinatários mais frequentes foram baixando de idade.

Uma outra reconquista da liberdade na BD começaria a verificar-se, acompanhando outros acontecimentos e fenómenos, nos anos 60, em diversos países ocidentais, abordando temas proibidos, enfrentando tabus, abrindo o leque de uma produção com uma importante vertente destinada a um público adulto, primeiro com predomínio das razões e transgressões mais óbvias (o erotismo, a exposição mais ousada do corpo, a sexualidade), depois utilizando a maior liberdade para um efectivo amadurecimento temático e psicológico.

Portugal acompanhou de algum modo essa transformação e abertura, acabando o regime salazarista por cair numa altura em que, curiosamente, nas democracias ocidentais mais antigas, ou (re)surgidas depois da II Guerra Mundial, profundas mudanças culturais e sociais também se estavam a verificar – o que implicou uma imprescindível aceleração histórica.

Embora as continuidades históricas sejam mais reais do que as compartimentações e delimitações cronológicas que tanto jeito nos dão, talvez se possa falar, no que à BD diz respeito (e sem esquecer, pois, que ela, como a cultura em geral, reflecte sempre a evolução geral da sociedade), em dois saltos qualitativos recentes, o primeiro nos anos 60/70 e o segundo, ainda activo, nos anos 80/90. A nível europeu, sobretudo francês, que tem tido particular influência entre nós, um fenómeno técnico-comercial acompanhou estes dois saltos: a passagem e acentuação da produção e consumo de BD em álbum em vez das tradicionais revistas, num processo que simultaneamente reflecte e influencia as restantes evoluções verificadas.

É no seguimento desse primeiro salto qualitativo que, verificando-se o 25 de Abril, a BD portuguesa – que timidamente já o reflectira em alguns aspectos (no campo crítico e em algumas obras, sobretudo na excelente e efémera experiência do álbum de Augusto Mota e Nelson Dias Wanya Escala em Orongo) – vai simultaneamente inserir-se, ser influenciada e revestir toda uma originalidade e formas próprias resultantes dos acontecimentos políticos e sociais intensos vividos entre nós.

Página do primeiro número da revista Visão, de 1 de Abril de 1975, com um excerto da história mais significativa e que maior impacto teve nesse número: «Matei-o a 24», de Victor Mesquita e Machado da Graça.

Página do primeiro número da revista Visão, de 1 de Abril de 1975, com um excerto da história mais significativa e que maior impacto teve nesse número: «Matei-o a 24», de Victor Mesquita e Machado da Graça.

Neste contexto, a Visão que se subintitulava no início «para uma nova banda desenhada portuguesa», vai mostrar breve mas eloquentemente que a BD, curta e incisiva ou longa e pormenorizada, a cores ou a preto e branco, pode ser história muda, poema lírico, história realista, aventura cósmica, apontamento humanista, sátira corrosiva, parábola divertida, biografia, recriação de base literária, evocação histórica documentada, denúncia social, etc., etc. Apesar da modernidade, em que a revista francesa Pilote era uma das influências mais notórias, e de algum arrojo na construção da prancha, as novas propostas não constituíam uma ruptura estética radical, não deixando de se inserir num certo classicismo narrativo. Mas os temas eram realmente outros, uns apenas pouco habituais, outros absolutamente impensáveis um ano antes por razões óbvias, outros ainda reflexo directo e interveniente da situação política que se vivia. E esta experiência efémera vai simbolizar entre nós um dos primeiros e mais significativos sinais desse cruzamento complexo entre a BD clássica, a BD alternativa e os respectivos públicos, que está ainda a fazer o seu caminho e tem marcado a BD contemporânea.

Numa famosa página colectiva, logo no n.º 1, Spínola começa por ser identificado com Salazar e acaba denunciado como Pinochet. Ao lado, no traço de Zepe, um dos nomes relevantes deste período, um capitalista desfaz-se ao querer apanhar do chão mais uma moeda. Este será um dos tons dominantes do 25 de Abril na BD, mas de forma alguma único. A abrir, Victor Mesquita, director da primeira fase da revista e um dos principais autores de BD em actividade, inicia uma reflexão cósmica numa aventura de ficção científico-mística, «Eternus 9». André e Vícaro trazem-nos uma parábola em ambiente pré-histórico. Carlos Barradas, com Carlos Soares, dá-nos uma perturbante e original evocação do antes do 25 de Abril, história com lugar em qualquer panorâmica do tema. Zé Paulo, com a verve habitual, brinca com a própria BD parodiando a criação da revista. Serão dele, com «Histórias que a minha avó contava para eu comer a sopinha toda» e «A família Slacqç», algumas das melhores páginas da Visão. A sua «Batalha de Rzang», no n.° 7, perante os acontecimentos no e em torno do Kosovo, adquire um impressionante tom profético, a que nem faltam, no final, ciúmes em relação à atribuição do Prémio Nobel (da Paz).

Era também de Victor Mesquita, com Machado da Graça, a história mais significativa e de maior impacto desse primeiro número, que lamentavelmente viria a ficar incompleta (para sempre?), «Matei-o a 24», história realista, humana e convincente da dificuldade de reintegração na vida civil de um ex-combatente na Guerra de África, constituindo uma denúncia ainda invulgar na altura. Esta temática, que fora tratada com alguma frequência antes do 25 de Abril na perspectiva do regime (havendo também bandas desenhadas mais recentes com um equiparável espírito nostálgico), constitui obviamente, numa perspectiva crítica, outro dos caminhos da BD de Abril, não sendo no entanto tão frequente quanto se poderia prever, predominando o tom pacifista. Pedro Massano, outro dos autores principais do projecto Visão que teria uma carreira importante na BD, também no activo, faria uma pungente denúncia semelhante no n.° 7, em «Angola 1971». Significativa e expressiva do ambiente vivido foi a tradução de uma biografia cubana sobre Amílcar Cabral,marcadamente anti-colonialista. Os novos países africanos de língua portuguesa não deixariam, aliás, na sua BD, de evocar a guerra e a descolonização, sendo particularmente interessante um livro do MPLA, publicado em Portugal em 1974, Contra a escravidão pela liberdade, que é considerado o álbum fundador da BD angolana, ao que parece realizado na Argélia em 1965,da autoria de Henrique Abranches, o grande animador da BD angolana, do escritor Pepetela e de Adolfo Maria.

Augusto Cid, Povo Livre, 16 de junho de 1976.

Augusto Cid, Povo Livre, 16 de junho de 1976.

Seria igualmente de esperar uma maior evocação do regime salazarista, a sua repressão, o seu obscurantismo, o outro lado da versão oficial até 74, na linha da parábola de Carlos Barradas. A pressão do presente e o entusiasmo pelo futuro eram no entanto mais fortes que a recordação do passado, o que não impediu a denúncia da PIDE em dois tomos do «Dossier Pide-DGS», ou a recordação da clandestinidade comunista em Pela madrugada, das Edições Avante, ou ainda, num projecto que ficou inacabado, e a pretexto do 25 de Abril, o começo da história do 28 de Maio no Diário Popular por Jobat.

O músico Carlos Zíngaro, Duarte (com uma vasta e desassombrada obra satírica, desde antes do 25 de Abril, nomeadamente com os «Kolans»e o metafórico álbum Kolanville), Nuno Amorim, Isabel Lobinho, uma das nossas principais e mais arrojadas autoras de BD, com sensuais e marcantes adaptações de Mário-Henrique Leiria, como no álbum Mário e Isabel, símbolo também de novos caminhos que não tiveram a continuidade desejável, estes e alguns outros completaram esta lufada de ar fresco que, não se concretizando como a alternativa com que sonhavam, foi um sinal de abertura e liberdade e um marco incontornável. O que não impediu a BD tradicional de seguir o seu caminho, baralhando cronologias, mas não sem que, paulatinamente, a modernidade se fosse, dentro do possível, instalando.

O amadurecimento do público não se faz, aliás, sem tempo e coragem editorial. Se Corto Maltese, publicado em Portugal pela primeira vez em 1975 nas páginas da versão portuguesa da revista Tintin (a última revista marcantemente geracional entre nós, que atravessa toda a década), se tornaria um dos ícones da nossa cultura, em 1979 o notável projecto do jornal Lobo Mau, que apresentou obras tão magníficas e profundas (os termos não são exagerados nem apologéticos – a BD como arte do século XX passa, entre outros, por estes nomes) como «Mort Cinder», de Alberto Breccia e Oesterheld, «AlackSinner» de Munoz e Sampayo, «Fritz the Cat e outras histórias» de RobertCrumb, «Valentina» de Guido Crepax, «Sgt. Kirk» de Hugo Pratt, etc., não passou do n.º 13.

Vai ser, pois, na multiplicidade das suas potencialidades que a BD vai ser amplamente usada, tornando-se, com o recuo de hoje, um inesperado, original e predominantemente divertido espelho da época

Vai ser, pois, na multiplicidade das suas potencialidades que a BD vai ser amplamente usada, tornando-se, com o recuo de hoje, um inesperado, original e predominantemente divertido espelho da época e das vicissitudes vividas, sinal dos tempos no sonho, na utopia, na crítica, na demagogia também. O seu contributo merece ser analisado e recordado sem complexos comparativos – vale pela qualidade intrínseca de algumas obras, e vale globalmente pela especificidade da sua linguagem e da sua abordagem. Com um interesse acrescido neste tempo de balanço dos 25 anos: é que e de longe a forma menos lembrada, estudada e acessível.

Se nos cingirmos essencialmente aos tempos imediatamente posteriores ao 25 de Abril, não é, compreensivelmente, a aventura que vai predominar (aliás, a BD portuguesa não tem tido facilidade em criar heróis sólidos e aventuras «realistas» originais de fôlego), mas a BD de intervenção e pedagogia política e de comentário e sátira político-social.

E uma última distinção teórica não pode deixar de ser feita, visto ser particularmente pertinente neste caso – a distinção entre banda desenhada e cartoon, O cartoon, o desenho satírico, mesmo sendo subjacentemente narrativo (no sentido em que se pode falar em pintura narrativa), caracteriza-se essencialmente pelo poder de síntese, pela concentração num momento forte em que «tudo e dito». Mas como a criatividade está para lá dos compartimentos estanques, por vezes o cartoon desdobra-se numa sequência, desmultiplica-se em dois ou mais momentos – e estamos na fronteira com a BD, que tanto pode ser um roman fleuve com centenas de páginas, como uma breve e incisiva sequência de uma tira em 3 ou 4, ou, no limite, dois desenhos. Ora esta fronteira aparentemente especiosa tem uma efectiva importância prática, não só em função das especializações dos estudiosos (embora a interdisciplinaridade seja sempre salutar), mas também porque a essa relação ambígua talvez não seja alheia, entre outras causas, o esquecimento da BD de Abril, sendo o cartoon, pelo seu impacto imediato (incluindo BD que muitos acaba m por nem considerar como tal), evocado com muito mais frequência. Na exposição (e catálogo), por exemplo, comissariada pelo incansável investigador e divulgador Osvaldo de Sousa e organizada inicialmente pela Câmara de Oeiras em 1998, a BD está presente, mas é o cartoon que constitui o cerne – e no entanto como se vê, quanta BD não caberia nesse título.

É nessa fronteira que estão alguns dos símbolos maiores que marcaram o pós-25 de Abril. Com predomínio do desenho satírico em que as incursões na narratividade da BD são breves e escassas está desde logo João Abel Manta, cuja obra gráfica ficará com um dos ícones do 25 de Abril, merecendo particular destaque as recentemente reeditadas Caricaturas portuguesas dos anos de Salazar.

Já claramente no campo da BD (e no entanto, quando se falava ou fala desse saudoso humorista multifacetado, quem se lembraria de o considerar autor de BD?), um dos mais importantes cronistas da época foi indiscutível e indelevelmente Sam. Com o seu Guarda Ricardo, particularmente, conseguiu uma conciliação nada fácil entre um estilo muito pessoal e subtil, um enraizamento forte na realidade quotidiana (muitas vezes citada, através de notícias de jornais, etc, o que constitui hoje uma ajuda preciosa) e uma distância e intemporalidade filosófica que nos permite, a um quarto de século de distância, simultaneamente revisitar e reflectir sobre o 25 de Abril e deleitarmo-nos simplesmente com a actualidade e a graça de muitas dessas etéreas páginas.

Com um pé, narrativamente, em cada lado e os dois no outro lado do espectro político, outra presença emblemática, pela originalidade, qualidade e contundência, é Cid, que se pode «orgulhar» de ter tido livros proibidos (retirados) depois do 25 de Abril.

Augusto Cid, Povo Livre, 16 de junho de 1976.

Augusto Cid, Povo Livre, 16 de junho de 1976.

Desse mesmo lado, não deve ser esquecido n’”A Rua”, a presença virulenta de Marcello de Moraes, um dos principais autores de BD da escola humorística do Camarada (revista – recorde-se e esclareça-se – da Mocidade, importante na história da nossa BD), que, apesar de já depois do 25 de Novembro, manteve, como Cid, uma visão negativa da democratização da sociedade portuguesa, também em parte recolhida em álbum.

Com um posicionamento ideológico-partidariamente bem definido e assumido (PCP), o que não excluiu muitas obras e intervenções mais metafóricas e desapegadas de circunstancialismos, foi o trabalho de José Paulo Simões – Zé Paulo – que, quanto mais leio e releio, mais considero um dos grandes e mais originais artistas da época, e um dos melhores autores da BD portuguesa. Para além da intervenção em várias publicações, com destaque para a já referida Visão, O Diário, etc., é o autor do melhor álbum de BD satírica produzido no PREC, A direita de cara à banda (desenhada). Pode-se mesmo considerar um símbolo da BD portuguesa de Abril no seu melhor, interiorizando e personalizando lições várias e com um sentido de humor devastador que vem não só da imaginação e da qualidade da escrita mas de um domínio pleno das técnicas da BD. É uma das pérolas desse período que só por si justifica a redescoberta do papel desempenhado pela BD. E no entanto, sintomaticamente, É uma obra inexportável, pois está profundamente enraizada na realidade portuguesa, e a sua reedição hoje, que bem valia a pena, exigiria notas contextualizadoras, pois, se o humor persiste, muitas piadas perder-se-ão se não se conhecerem certos acontecimentos e sobretudo quem são as personagens, que vão obviamente do antigo regime ao MRPP, passando por CDS, PPD e, com particular enlevo, pelo PS – além das referências literárias, cinematográficas e outras que estão subjacentes.

A banda desenhada de Carlos Barradas, baseada n' O Capital de Karl Marx, é um exemplo particularmente feliz da utilização didáctica da BD.

A banda desenhada de Carlos Barradas, baseada n’ O Capital de Karl Marx, é um exemplo particularmente feliz da utilização didáctica da BD.

Neste percurso, apesar de tudo necessariamente breve, pelos highlights, outro dos nomes fundamentais, pela quantidade e qualidade, foi Carlos Barradas. Um só livro (em que foi, pelo desenho, a face mais visível do projecto) bastaria para o colocar no panteão de Abril – a adaptação de O Capital de Karl Marx. Empresa impossível, o resultado é notável pelo interesse e eficácia e pelo engenho das imagens, constituindo um exemplo particularmente feliz, da utilização didáctica da BD, vertente que, apesar das exceções e da sua inegável importância, é ingrata e marginal em relação à força e à especificidade da BD ficcional propriamente dita. Mas o talento versátil de Barradas, outro autor cuja reedição antológica seria surpreendente, foi muito mais longe. Além de também ter sido um dos autores da Visão, deixou páginas notáveis em publicações efémeras mas importantes na altura, como O Coiso (espetacular de minúcia e cumplicidade a capa do número relativo às eleições de 25/4/75) ou Péde Cabra.

Esta, aliás, na linha de publicações como o espanhol Hermano Lobo ou o francês Charlie Hebdo, caracterizou-se por uma intervenção crítica oportuna e esteticamente convincente, publicando logo no n.° 1 uma das mais deliciosas bandas desenhadas sobre o 25 de Abril propriamente dito, de E. Perestrelo, já conhecida pelo «Milagre dos cravos».

Diversos têm sido os caminhos dos artistas que deixaram marcas mais relevantes na BD de Abril. Quem se lembra hoje que António, cujos brilhantes e surpreendentes quadros satíricos são uma das imagens de marca fundamentais do Expresso, um dos maiores cartoonistas/caricaturistas do nosso tempo, foi também um dos mais significativos e originais autores de BD dessa época? Presente em várias publicações, autor de uma das páginas que, precisamente na fronteira entre cartoon e banda desenhada, mais genialmente resumem o 25 de Abril e a questão militar que esteve na sua origem, seria sobretudo com Kafarnaum, no Expresso e em livro que António, num hábil jogo gráfico-linguístico, desmistificaria as taras e tiques do PREC, reflectindo inclusivamente sobre a própria BD o seu papel, parodiando largamente personagens populares da BD.

António, um dos maiores cartoonistas/caricaturistas do nosso tempo, é autor de uma das páginas que, na fronteira entre o cartoon e a banda desenhada, mais genialmente resumem o 25 de Abril e a questão militar que esteve na sua origem. «25 de Abril», Suspensórios, Polemos, 1983.

António, um dos maiores cartoonistas/caricaturistas do nosso tempo, é autor de uma das páginas que, na fronteira entre o cartoon e a banda desenhada, mais genialmente resumem o 25 de Abril e a questão militar que esteve na sua origem. «25 de Abril», Suspensórios, Polemos, 1983.

A utilização das personagens da BD foi aliás uma prática abundante e que constitui só por si um capítulo à parte na caracterização da BD desta época, reflectindo a popularidade da própria BD e a sua eficácia imagético-simbólica. Estudantes, sindicatos, comissões de moradores usaram-nas largamente. Ficaram famosas as fotomontagens do Jornal Novo. Eanes pela mão de vários e sobretudo de Cid, foi Superman e foi Tarzan A Flama numa série de Manuel Vieira sobre algumas figuras da época, em que, por exemplo, Mário Soares é o Príncipe Valente e Álvaro Cunhal é Mandrake, foi advertida pelo autor e editor por ter caracterizado Rosa Coutinho como Tintin.

Diferente mas igualmente importante e particularmente exemplar do espírito da época foi a actividade do que viria a ser outro dos principais e mais emblemáticos cartoonistas portugueses contemporâneos, Rui Pimentel, hoje na Visão (que nada tem a ver com a Visão de 75/76, claro). Na revista Spartacus, ligada ao Grito do Povo/OCMLP, que conteve das mais interessantes páginas de BD numa perspectiva maoista, fortemente crítica do PS e do PCP, participou num projecto anónimo e colectivo que teve o seu ponto culminante num álbum de histórias aos quadradinhos (como consta da própria capa) sobre A Comuna de Paris – 1871. Exemplo típico de BD didáctico-histórica orientada, resultou de uma experiência porventura única, feito a 4 mãos, chegando a haver vinhetas com contributos de todos (os restantes eram Elisabete José, Jorge Pé Curto e Nuno Pacheco).

Este projecto começara ainda no exílio, caso também da 1.ª edição policopiada de um dos mais expressivos álbuns de BD anteriores ao 25 de Abril e totalmente integrado no espírito e nas lutas da época do movimento marxista-leninista, A revolta de 18 de Janeiro de 1934 na Marinha Grande, que, além da sua carga mítica para as forças que se opunham ao PCP, permitia tirar lições contra o divisionismo dos trabalhadores.

Dos autores que tiveram mais relevo na época (e não considerando o projecto da Visão), aquele cuja carreira no campo da BD teria mais continuidade, importância e influência, seria indiscutivelmente Fernando Relvas. Participando no nascente movimento dos fanzines {FANático + magaZINE, publicações amadoras), que começara pouco antes do 25 de Abril, seria sobretudo na Gazeta da Semana, e depois num álbum, que, com a sua reconhecida «pata de ouro», deixaria a sua divertida e irresistível visão crítica, como foi o caso de Eanes nas eleições presidenciais de 76 (Eanes, aliás, que seria um dos grandes «heróis» da BD de Abril, como Sottomayor Cardia no meio estudantil, Spínola no início, além de todos os principais dirigentes partidários, etc -e as eleições só por si também mereciam uma análise mais detalhada, com destaque para a campanha de Pinheiro de Azevedo por Vítor Péon).

A direita de cara à banda e O Capital sintetizam exemplarmente as características da produção dominante de BD no pós-25 de Abril: fortemente interveniente e crítica (com evidente predomínio da esquerda e da extrema esquerda, mas – como se viu – não exclusividade), dividiu-se entre a sátira e a pedagogia, o didatismo teórico e histórico e o humor, sendo frequente a intersecção entre as duas abordagens. É o caso paradigmático entre todos de uma história de uma página que teve um sucesso fulgurante, sobre a noção de mais-valia e a inutilidade dos patrões, que teve a curiosidade de ser publicada em várias versões com vários estilos, chegando a figurar num mural – essa outra forma, mais lembrada e documentada de intervenção gráfica característica de Abril, onde a BD também teve episódicas presenças.

Pelas suas próprias características de fusão entre imagem e texto, era natural que a banda desenhada surgisse como um meio privilegiado de comunicação neste período. Não só como meio de expressão de determinadas ideias e mensagens, mas também na expectativa da sua maior compreensão e impacto. Diversas forças reclamando-se do marxismo sentiram a necessidade e urgência de fazer um autêntico «curso acelerado» de educação política, com o objetivo de ensinar a desmontar a exploração capitalista, quer através de traduções quer empublicações várias como os cadernos «Zapa», e cujo exemplo maior é a já referida adaptação desenhada por Carlos Barradas.

Essa utilização da BD como instrumento pedagógico, que é a outra face da BD político-satírica, teve também uma abundante utilização, e em geral mais bem disposta, na informação cívica intervindo numa série de aspetos da sociedade em que funciona como motor e espelho, tornando salientes mudanças que são afinal as mais profundas e duradouras desencadeadas, possibilitadas, facilitadas ou potenciadas pelo 25 de Abril, ou procurando encarar determinadas realidades com um novo espírito. Desse vasto leque, recordemos apenas dois casos: um pela raridade e o inesperado do contexto em que foi usada – a campanha do Ministério das Finanças do imposto complementar de 1975, protagonizada pelo Zé Olhinhos, com desenhos de António Alfredo; outro, peb felicidade, objectividade e alegria didáctica indiscutível, além de se tratar de um tema central da democracia – o livro do MFA Vão à escola? Não, vão votar!

Xingu e M. Tavares, Vão à escola? Não, vão votar!

Xingu e M. Tavares, Vão à escola? Não, vão votar!

Estas preocupações foram acompanhadas por uma muito maior presença da BD no ensino com o que isso teve por vezes de excessivo, mas com o interesse de a BD também ter sido ela própria objecto de estudo e valorizada enquanto tal, através de obras autênticas e de qualidade.

Nas publicações estudantis, sindicais, de moradores, boletins militares, na imprensa de grande expansão ou mais restrita, partidária, regional, etc., muitas outras bandas desenhadas e muitos outros nomes poderiam e deveriam ser evocados. Há todo um trabalho de pesquisa e redescoberta a fazer. Mas já não se está no ponto zero.

Uma exposição intitulada «Uma Revolução desenhada – o 25 de Abril e a BD» está patente na Bedeteca de Lisboa, no Palácio do Contador-Mor, nos Olivais, quando este número sair. Vinda de Coimbra, aonde regressará em Setembro, é um projecto do Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra com a colaboração de Centro de Estudos Sociais também de Coimbra e da Bedeteca da Câmara de Lisboa, comissariado pelo autor destas linhas com João Miguel Lameiras e João Ramalho Santos, tendo dado origem a um desenvolvido livro/catálogo.

É um ponto de partida, mas muitos dos aspectos aqui abordados e muitos outros são tratados, incluindo visões estrangeiras (nomeadamente das revistas Pilote e À Suivre) e uma análise muito mais desenvolvida da BD da época, complementada por uma lista quase exaustiva dos álbuns publicados, da autoria de Carlos B. Pinheiro, entre outros contributos.

É igualmente abordada a maneira como a BD, até à actualidade, encarou e tratou o 25 de Abril (vertente já enriquecida com obras entretanto publicadas, da biografia de Salgueiro Maia por António Martins ao projecto em curso no jornal Público delineado por Nuno Saraiva), presente em Histórias de Portugal ou outras, como Era uma vez a escola sobre a evolução do nosso ensino ou sobre Macau, objecto de evocações pessoais mais recentes (como é o caso da 2.ª parte da exposição e do livro que reúne 17 perspectivas de autores contemporâneos), etc., destacando-se uma síntese factual em duas páginas de Victor Mesquita, numa obra colectiva de 1984.

A principal BD que conta a história do 25 de Abril, incluindo os seus fundamentos, num distanciado tom de sátira pleno de humor, permanece, porém, O País dos Cágados, de Artur Correia e António Gomes de Almeida, iniciado ainda na década de 70 numa revista efémera chamada precisamente O Cágado, mas só publicado em 1989 e que só por si merecia uma análise autónoma.

Passados 25 anos sobre o 25 de Abril, tão próximo e tão longínquo, é tempo de alargar a visão poliédrica. É tempo de novas abordagens. É tempo de ver novos espelhos, onde as imagens reflectidas são também imagens reflectoras. É tempo de recordar outro olhar: o da banda desenhada.