Edite Estrela
A recorrente pergunta de Batista Bastos, a exigir ao entrevistado «toda a franqueza» na resposta – «onde é que tu estavas no 25 de Abril?» – tem sido glosada em vários contextos e com diferentes registos. Nem sempre adequados. Embora seja uma expressão datada, também eu não resisto à tentação de me apropriar dela e de a reformular para inquirir: Onde estavam as mulheres no 25 de Abril?
A pergunta é pertinente. A Revolução dos Cravos não teve heroínas nem relatoras. Não vimos qualquer mulher a merecer lugar de destaque nem sequer a contar-nos o que se passou. Aquele dia foi sobretudo «vivido» no masculino. Infelizmente aquela importante página da história nacional não foi escrita por punho feminino. Rezam as crónicas que foram homens os estrategos e os obreiros do 25 de Abril e, ainda, os rostos e as vozes que o povo viu e fixou. E compreende-se porquê.
Revolução feita por militares, o 25 de Abril tinha necessariamente de valorizar a intervenção masculina, uma vez que as Forças Armadas ainda não tinham aberto as portas dos quartéis à participação feminina. Os militares do 25 de Abril eram, como os de 24, homens. E também os líderes da oposição ao regime (neste domínio, aliás, o país pouco mudou: o reino da política continua a ser o reino do masculino!) e os deputados da ala esquerda da Assembleia Nacional. Em suma, a classe política era quase exclusivamente constituída por homens. Essa ausência de protagonismo no feminino não significa que as mulheres não estivessem com a revolução e que muitas delas não se tivessem envolvido no processo antes, durante e depois.
Houve mulheres que sacrificaram carreira, vida pessoal e a própria liberdade para que Portugal fosse um país livre e democrático.
Houve mulheres que sacrificaram carreira, vida pessoal e a própria liberdade para que Portugal fosse um país livre e democrático. Porventura por excessiva discrição, as mulheres estiveram presentes, mas quase invisíveis. Dando o seu contributo, sem nada pedir em troca, com determinação, fazendo o que devia ser feito para que a revolução fosse bem sucedida. Como foi. Sem violência nem derramamento de sangue, sem vinganças nem ajustes de cantas ou estragos inúteis. Na generalidade, as mulheres desempenharam o papel que tradicionalmente lhes era atribuído, permanecendo no espaço privado, a casa, e deixando livre todo o espaço público para a afirmação masculina.
Talvez a criança do poster que correu mundo ao lado da espingarda com o cravo pudesse ser uma menina. Podia, mas não era. Mulher, só Sophia, poeta, vate e demiurgo, situando-se num plano diferente, entre o povo e a divindade. E com ela, no dia da revolução, a poesia esteve na rua.Revolução no masculino de que obviamente as mulheres muito beneficiaram. Com a revolução quebraram-se normas e regras seculares, aboliram-se tabus e preconceitos. A mulher portuguesa deixou de ser olhada apenas como filha, esposa e mãe e passou a ser considerada também como cidadã. Com os mesmos direitos e deveres que os homens, reconhecidos pelas leis que foram sendo adequadas aos novos tempos. Pôs-se fim a todo o tipo de discriminação. No plano legal, homens e mulheres passaram a ser iguais. Mas não o foram, nem são, de facto, porque o ritmo da vida e sobretudo a mudança das mentalidades não coincidem com as alterações produzidas nas leis.
Mesmo assim, pouco a pouco, as mulheres foram ocupando o espaço público e conquistando um estatuto diferente. Foi-lhes reconhecido o direito à participação na vida política e à realização profissional, sem limitações de acesso a qualquer carreira. Sem limitações legais, entenda-se, porque na prática elas subsistem, ainda hoje, 25 anos depois.
Mas então onde estavam as mulheres?
Um pouco por toda a parte, naturalmente. Não estavam, com certeza, na diplomacia nem na magistratura. E também não estavam nas autarquias. As mulheres estavam impedidas de exercer essas profissões. Só depois de 1975 surgiu a possibilidade de serem Presidentes de Câmara, juízas e embaixadoras. O que teve consequências no nosso idioma.
Vejamos como é que a língua portuguesa conciliou a evolução do papel da mulher na sociedade dos nossos dias e o tratamento gramatical do feminino A este propósito não posso deixar de citar as palavras de João de Araújo Correia: «Poucas línguas se poderão gabar de tanta abundância de termos femininos como a nossa. O francês arrepela-se de possuir apenas meia dúzia». Aliás recorre ao Monsieur / Madame para não condescender com o feminino – Monsieur le professeur / Madame le professeur; Monsieur le médecin / Madame le médecin… E acrescenta: «[…] Pelos domingos se tiram os dias santos. O que se diz de poetisa e rainha, poderá dizer-se de ministra, embaixatriz, etc. Seria ridículo o ministro ou o embaixador que pintasse os lábios em público. Não deixe a mulher de ser mulher para exercer funções de advogado, médico e engenheiro. Seja briosamente advogada, médica e engenheira» (in Língua Portuguesa).
Mas os novos tempos abriram perspectivas de novas carreiras para as mulheres. E as novas funções da mulher exigiram adaptações a nível da língua. É o caso do feminino de embaixador. A coexistência de embaixadora a par de embaixatriz parece resultar da necessidade (ou será preconceito?) de distinguir a mulher do embaixador, tradicionalmente designada por embaixatriz, e a chefe da embaixada, ou seja, a mulher que desempenha tal cargo diplomático. Assim, convencionou-se que esta última seria designada embaixadora.
Ainda em relação aos femininos, hoje já se fala de juízas e de ministras. No entanto, quem não se lembra da dificuldade dos nossos jornalistas quando a engenheira Maria de Lurdes Pintassilgo foi primeira-ministra? Ela era «a primeiro-ministro», «a primeira-ministro» e outras versões derivadas da criatividade linguística do repórter. O feminino juíza, caído em desuso, só depois do 25 de Abril volta a ser introduzido no discurso quotidiano. Aliás, esta referência à «revolução dos cravos», faz-nos recordar a revolução que exprimiu aquela: a da linguagem, mais propriamente, a revolução que se operou no léxico quotidiano. Houve palavras que, tal como a poesia, vieram para a rua. Eram as palavras que o antigo regime escondia porque não queria ser denunciada. Tinham essas palavras uma conotação bem negativa: fascismo e fascistas, a pide e o pide e ainda pidesco/pidesca. Houve também palavras que saíram da rua ou que deixaram de ter o sentido que dantes lhes era atribuído: a Família patriarcal, o Estado, em abstracto, a Igreja, misteriosa, e o Diário do Governo, onde os Governantes davam forma, a Bem da Nação, às dores de cabeça que o povo, analfabeto, sempre lhes provocava! Deus, Pátria, Autoridade zelavam pela Ordem e impunham a Disciplina. E houve palavras libertadas que circulavam por entre os cravos: democracia, democratas, democrático; assembleias, reuniões – com pontos de ordem à mesa, moções, declarações de voto, requerimentos… -, comícios, manifestações do povo unido-, discursos de consenso, plataformas de entendimento entre sindicatos e patrões, partidos com os seus líderes de ocasião, quase sempre apoiados pelos líderes de opinião, sempre, ou quase sempre, figuras carismáticas. Houve a moda nova, a festa das siglas, as letras que era obrigatório aprender para compreender as mensagens que brotavam incessantemente, torrencialmente: MFA;PREC; SUV;…
Foi assim no 25 de Abril de 1974. E depois também. Como já disse, as mulheres com actividade política eram raras, mas mesmo essas foram completamente ignoradas no processo revolucionário. Se fosse hoje, como seria? Necessariamente diferente. As mulheres, ainda que minoritárias, estão já presentes nas várias instâncias do poder, no governo, no Parlamento, no poder local, nas associações cívicas, nas empresas e nas Universidades. Estas mulheres, com provas dadas e bem sucedidas nos vários sectores da nossa sociedade, não deixariam de assumir um papel activo num acontecimento tão fundamental como foi o 25 de Abril. Até porque não há mudanças sociais enquanto as mulheres não entrarem em cena, como reconhecia o escritor inglês H. G. Wells.
(in Revista Camões, n.º 5, 1999)