por João Pinharanda
O programa da seleção que me foi apresentada era claro: de que modo poderemos mostrar como uma disciplina tão antiga – carregada de códigos técnicos e interpretativos que não só resistiram a toda a revolução moderna como nela participaram -ainda nos serve para pensarmos a realidade movente e movediça que hoje nos cerca? Num número dedicado ao 25.° aniversário do 25 de Abril pretendia mostrar-se como é que artistas com trabalho enraizado em contextos anteriores (por vezes muito anteriores) encontraram meios para ultrapassar a mera ilustração da mudança das realidades históricas (políticas, económicas, sociais, culturais) provocadas pela revolução e continuaram a fazer a história da arte portuguesa.
Recebendo esta proposta como desafio achei possível encontrar para ele resposta positiva. Um grupo significativo de pintores históricos (vindos da década de 40 ou da década de 50/60) tinham acompanhado sempre, ao longo da sua obra, a realidade histórica, tinham feito dela matéria de criação visual. Ou tinham sabido transformar o que parecia ser uma vocação de pura investigação plástica e de temáticas reflexivas e eminentemente subjetivas num discurso revelador da complexidade da condição humana contemporânea. Em ambos os casos os artistas foram exercendo cruzamentos interdisciplinares entre todas as artes. Interessaram-me especialmente – até para justificar o autor que o título desta revista evoca – os cruzamentos que estes artistas estabeleceram com a literatura.
Esses cruzamentos são por vezes muito subtis. Dacosta oferece-nos a herança da liberdade surrealista de associação de todas as imagens – verbais e visuais, inconscientes e racionais.
Júlio Pomar, liberto desde os anos 50 de qualquer missão programática e ideológica, nunca deixou de explorar a lógica de séries onde vai desenvolvendo infinitas variações onde a cor e a forma, o movimento e o cruzamento de imagens são condição de liberdade interior e exterior à pintura, interior e exterior ao pintor.
Menez vem de uma liberdade individual que faz coincidir matéria pictórica e consciência subjetiva, a palavra que preside ao seu destino é a palavra poética, aquela que cria o seu próprio objeto (aquém e além da realidade) até tornar lentamente nítida a imagem da sua melancolia ou angústia.
Paula Rego sempre conduziu a sua vasta galeria de imagens para uma vocação de cena dramática, sempre soube tornar o que de pessoal e intransmissível existe na sua obra em imagem narrativa e teatral coletivamente eficaz.
Finalmente, António Costa Pinheiro gere um discurso de signos. Cada imagem é um modo de representar uma ideia e cada imagem tende a transformar-se em ícone dessa ideia, carregada de símbolos, oferecendo as suas infindas variações a uma descodificação certa – e as ideias compõem uma teoria interpretativa da história e da cultura nacionais e da vida do pintor.
António Dacosta
Poderíamos referir aqui o rosto frontal e estático de «Soror Mariana», a «Serenata Açoriana» ou «Fernando Pessoa debaixo da latada». São três peças da última fase da pintura de Dacosta (depois do seu «regresso» à pintura, cerca de 1980) onde a literatura parece ser mais ou menos diretamente evocada: a freira de Beja; Nemésio, conterrâneo de ilha (Terceira, Açores); Pessoa, feito fauno descansando sob uma sombra verde e fresca. Preferimos falar de «Dois limões em férias». Porque nessa pintura tudo se mostra e nem uma palavra parece adequada ao seu comentário, porque tudo se sugere e nada dela pode existir. O enigma não se reduz à mera organização formal de um jogo ou charada descodificável. Pelo contrário, o mistério adensa-se e é provocado pela emblematização das figuras que, destacando-se de uma densa mas depurada atmosfera visual, se inscrevem na composição sóbria e rigorosa através de uma cor aberta mas económica e que ganham corpo numa textura sensual mas sem acumulação matérica.
Tudo pode ser aqueles dois limões amantes em férias frente ao mar esperando um barco: uma visão de nós mesmos, do fragmento de um corpo amado; ou o puro desejo da liberdade que se encontra.
Júlio Pomar
Talvez nenhum outro pintor português tenha durante tanto tempo procurado a relação com a palavra literária. Essa vocação vem desde o seu período neorrealista mas acentua-se com a liberdade temática que lhe permitiu aproximar-se de Baudelaire, Rimbaud, Borges, Pessoa… Talvez possamos mesmo dizer que outra das vertentes mais fortes do seu trabalho, a citação da história da arte e das suas realizações (por exemplo, através das séries em que acompanhou o neoclássico Ingres), tenha a ver com o mesmo impulso de trabalhar sobre uma matriz que sucessivamente aceita e revê – aí a pintura ou a sua história funcionariam como matéria literária.
«Lusitânia no bairro latino» (e a exposição em que a peça se integrou em 1985) significa uma primeira intervenção significativa do pintor no contexto dos anos 80 – não por demonstrar necessidade de mudança de estratégia pessoal mas por funcionar como marcação de um caminho próprio dentro da vocação citacionista, literária e eclética dessa década. Evocar, através de António Nobre, a condição emigrante dos intelectuais portugueses em Paris (onde ele mesmo se situa, pois aí habita desde há 40 anos), cruzar alguns dos referentes maiores desse despaísamento (literários, com Sá Carneiro, por exemplo, ou pictóricos, com Amadeo, por exemplo) é a estratégia adotada nesta pintura negra onde a cor se torna dramática e a dispersão da composição se polariza entre uma guitarra e a torre Eiffel.
Menez
É talvez, dos nomes aqui evocados, o que mais longe parece ter andado da imaginação literária. Feitas de impressões cromáticas e lumínicas as suas pinturas de 50 e 60, e mesmo de 70, são manchas abstratas onde se organizam paisagens que só muito lentamente vão tomando a forma de espaços renascentistas e habitáveis.
Nos últimos anos 70 e nos anos 80 os seus temas parecem deslocar-se em definitivo da abstração permitida pela paisagem (embora ela existisse desde sempre como evocação nostálgica) e orientam-se para a exploração de temas da literatura artística religiosa: S. Jorge e o dragão, a Cruxificação, a Descida da Cruz, a Piéta – temas da Paixão e dramas da luta entre o bem e o mal.
Os jardins labirínticos ou os ateliers «en abîme» que desenvolve nos anos finais da sua vida são cada vez mais limpos de cor (a sensualidade da cor fora a sua grande arma de sedução visual) e tornam-se verdadeiros lugares de reflexão da condição pessoal e modelos possíveis de um retrato do feminino. Uma mulher lê, uma mulher pinta, uma mulher olha. É a pintora e são todas as mulheres. As vezes várias mulheres acompanham-se uma mais velha outras mais novas, é a representação da escala das três idades clássicas, reflexão sobre a vida e a morte em que cada uma das personagens pode ser sempre a mesma, sempre a pintora ou outra qualquer mulher. As flores brilham nas jarras antes de morrerem, o rio Tejo abre-se para além da janela do atelier, os livros abrem-se uns sobre os outros no interior de uma casa que se desdobra em corredores e outras casas… Onde parecia haver uma infinita calma há afinal uma condição de angústia e desamparo.
Paula Rego
A pintora mantém com a literatura uma longa história. O Crime do Padre Amaro representa a última incursão num terreno onde já abordou temas da literatura popular e erudita inglesa ou portuguesa. Geralmente cada uma das matrizes de onde parte é, durante o trabalho, subvertida de modo livre. Impulsionada por uma espécie de delírio formal e narrativo, a pintora conduz as regras da criação até resultados que claramente se autonomizam do original. Histórias dentro de histórias é o que nos dá a ver. Histórias onde os sentimentos das personagens se revelam por simbologias e cifras entretecidas com a vida da própria autora. Cenários, adereços, gestos, figuras que pertenceram ao seu passado ou que ela ainda conserva desse passado (vestidos, por exemplo). Um passado que se concentra todo na experiência cultural e de vida da sua infância e adolescência em Portugal e dos primeiros anos passados, de novo em Portugal, com o marido inglês.
Estas glosas de O Crime do Padre Amaro conduzem Paula Rego para fora do romance de Eça de Queirós, quer em busca da arrastada condição arcaica de Portugal e da condição das relações entre o feminino e o masculino, quer em busca do verdadeiro Padre, do que justificaria a sua atitude criminosa: a falta de uma mãe, a dominação da madrinha, o convívio com as mulheres da casa, a sua solidão… Esta pintura, extremamente complexa e rica na sua composição visual, concentra tudo isso. Um homem abandonado à vontade das mulheres, que é um adulto e está no lugar da criança que foi, que se deixa mascarar de menina, que vê o seu reflexo do espelho deslocar-se erradamente, que é acompanhado na sua solidão por dois objetos capazes de lhe (nos) abrirem todos os sentidos da cena e da vida: um búzio e um barco…
Costa Pinheiro
«O pintor ele mesmo no seu espaço poético» é uma das imagens de marca da iconografia do autor e da presença de Fernando Pessoa na cultura nacional depois do 25 de Abril. Foi Costa Pinheiro que criou o novo ícone de representação coletiva do poeta. E tal como aconteceu ao primeiro deles (o retrato póstumo que de Pessoa fez Almada Negreiros),o ícone de Costa Pinheiro foi depois vulgarizado até à exaustão na pintura e na ilustração dos anos 80.
O primeiro grande momento da pintura de Costa Pinheiro estabeleceu logo uma relação memorialista com a cultura portuguesa. Foi a série dos Reis, através da qual, nos anos 60 – desde seu exílio em Munique – refletiu sobre a identidade nacional convocando, como que num baralho de cartas, os reis e rainhas da história de Portugal e do seu destino mítico, da Fundação ao Império – uma coincidência avant la lettre com a sua aproximação à figuração que viria a fazer de Pessoa.
Nos anos 70 e 80 as qualidades gráficas da sua pintura são exploradas em imagens bem mais claras. Costa Pinheiro parte para a exploração da figura e das ideias de Pessoa, especialmente da sua heteronímia. Aqui o pintor – em autorretrato – faz-se coincidente com a imagem-ideias do poeta. Pessoa e as simbologias dos seus heterónimos (navios, mar, óculos, etc.) são a referência central que, na obra escolhida, acaba por fazer coincidir o pintor com o poeta: perfil hierático, chapéu negro, bigode e patilha com um desenho estranho mas que afinal parecem pertencer-lhe desde sempre.
Muitos outros artistas anteriores ao 25 de Abril e que dentro dele prosseguiram o seu trabalho, vindos de contextos semelhantes e trabalhando matérias e linguagens comuns, poderiam aqui ter sido evocados: António Areal e Álvaro Lapa, talvez, antes de todos, porque a pintura de ambos faz corpo com a palavra, com o imaginário da literatura. Joaquim Bravo, que a eles esteve ligado em termos de carreira e que sempre associou a investigação visual abstrata à presença de uma cultura literária gerida com saber e distância irónica. Ainda Lourdes Castro, cujas formas-silhuetas assumem uma mudez e suspensão no tempo garantida por uma profunda ligação ao espírito do romantismo. Ou João Vieira que fez o melhor da sua obra no jogo com as letras, letras que soube tornar verdadeiros signos abstratos. Ou, finalmente, Jorge Martins que, ao mesmo tempo que ia libertando a cor e a luz recorrendo à citação das investigações visuais e científicas de Goethe, explorava o imaginário cinéfilo, a narratividade da BD e do nouveau roman e que nunca deixou de explorar (no seu desenho) os temas pessoanos.
Para não falar de todos os que, nos anos 80, constituem a primeira geração de criadores surgida depois da revolução, cuja obra não apenas revela profunda ligação ao novo contexto nacional e internacional como mantém uma atenção muito próxima ao mundo da palavra e aos universos da literatura e que, por isso, poderiam constituir um políptico complementar ao que aqui apresentámos: Pedro Cabrita Reis, Pedro Proença, Ilda David, por exemplo.
(in Revista Camões, n.º 5, 1999)